Opinião

Contrição não chega

Não sou a autora do título. Extraí-o do editorial do The Guardian, do último domingo, que reflete sobre o mais recente escândalo de pedofilia na Igreja Católica, desencadeado pelo Relatório da Commission Indépendante sur les abus sexuels dans l’Eglise. O Relatório, que avalia o período entre 1950 e 2020, está disponível na página em linha da Commission, assim como uma publicação com testemunhos que muitas vítimas prestaram. A Commission foi instalada em fevereiro de 2019 e, não obstante a pandemia, após dois anos e meio de trabalho apresentou o seu Relatório no passado dia 5 de outubro.

Transcrevo, em tradução livre, o parágrafo 0572 “O inquérito à população em geral permite estimar que 330.000 pessoas foram vítimas de crimes sexuais antes dos 18 anos de idade, perpetrados por pessoas ligadas à Igreja: membros do clero católico (padres e diáconos), membros de ordens religiosas, mas também pessoas laicas, homens ou mulheres, trabalhando num estabelecimento escolar de ensino católico ou em internato católico, ocupando-se da catequese ou da sacristia, envolvidos em patronatos, campos de férias ou movimentos de juventude católicos”. 

O Relatório refere o caráter massivo do fenómeno, a sobrerrepresentação da Igreja Católica no seio das instituições. “Uma atitude da Igreja Católica evolutiva ao longo do tempo, muito preocupada em proteger a instituição e, durante muito tempo, sem nenhuma consideração pelas pessoas vítimas” (p.245).

Em Portugal, em maio de 2019, a Conferência Episcopal Portuguesa comprometeu-se com a criação de instâncias de prevenção e acompanhamento orientadas para a proteção das crianças, na sequência de orientações emitidas pelo Vaticano, depois de uma Cimeira dedicada ao abuso sexual de crianças, na qual foram ouvidas vítimas.

Já esta semana, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) decidiu criar uma comissão nacional de coordenação das comissões diocesanas de proteção de menores e adultos vulneráveis, mas não se comprometeu com a realização de uma investigação similar à que se realizou em França.

A Igreja francesa não está sozinha nesta vergonha. Outras investigações, por exemplo em Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos relatam este tenebroso fenómeno e a incapacidade da Igreja para colocar as vítimas à frente da sua reputação. Em 2019, uma Comissão das Nações Unidas condenou a Itália por cumplicidade na proteção de padres pedófilos.

No mandato do Papa Francisco foram levantadas as regras do segredo que impediam que avançassem investigações sobre abusos sexuais praticados por padres. Aguarda-se para breve que o direito canónico expressamente criminalize o abuso sexual, o aliciamento de crianças para práticas sexuais, a posse de pornografia infantil e o encobrimento destes crimes.

O Papa Francisco expressou a sua vergonha. Entendo o seu gesto e sei o quanto é genuíno.

Mas a contrição não basta.

Na Igreja, e fora dela, exige-se muito mais. Todas as instituições que prestam serviços a crianças deveriam ter planos de prevenção e protocolos de ação. E há, ainda, a questão do abuso sexual por familiares ou pessoas próximas. A vergonha é de todos nós.