Opinião

Da Vitória Histórica do PS à Derrota Comprometedora da AD

No regime semipresidencialista português, um quadro parlamentar sem maioria absoluta coloca o Presidente da República numa posição central de arbitragem política. O híper ativo Marcelo interpretou mal essa centralidade. Marcelo fala com muita frequência e, por regra, fala de mais. Desvalorizou sempre a obrigação de reserva que lhe era exigida, numa circunstância política em que o PR tinha uma preponderância reforçada no equilíbrio do sistema.
O resultado era previsível. Os agentes políticos desvalorizaram o peso da sua palavra e a sua intervenção política. Em novembro de 2021, Marcelo confundiu um bloqueio negocial, em torno do Orçamento de Estado, com uma rotura insanável. A CDU e o BE ajudaram à precipitação de uma crise evitável. Estes dois partidos encetaram uma irresponsável corrida para o abismo, impossível de travar sem um deles perder a face. Nenhum cedeu e essa precipitação consomou uma crise política inédita, aberta pelo PR. Os partidos à esquerda do PS somaram a uma profunda crise pandémica uma crise política evitável. Pagaram um alto preço por isso. O voto preferencial em cada um deles transferiu-se como voto útil para o PS.
As eleições de domingo representam a resposta soberana da população portuguesa à crise política em que o país mergulhou. António Costa e o PS obtiveram uma vitória histórica que clarificou o quadro político nacional.
O PS venceu de forma clara e inequívoca. Assegurou a estabilidade política que o país necessitava, libertou-se do risco de situacionismo, reduziu a influência do PR sobre o sistema político, deixa a direita em cuidados intensivos, as empresas de sondagens na ala psiquiátrica e enterrou de vez o fantasma de Sócrates. Agora o desafio é construir um bom governo e escolher bons ministros. O PS terá de reforçar o diálogo social com diversos sectores e resistir à tentação de se barricar atrás de uma confortável maioria parlamentar. A maioria é um meio para as transformações necessárias. Não pode nunca ser confundida com um fim.
Os partidos de direita também têm muitas ilações a retirar. Nomeadamente que nem Margaret Thatcher, que liberalizou quase tudo no Reino Unido, ousou tocar no serviço de saúde público britânico. O PSD brincou com o fogo ao ser ambíguo sobre o futuro do SNS em tempos de pandemia. Para os portugueses, tal como para os britânicos, o serviço público de saúde é uma conquista civilizacional. O PSD necessita de se reorganizar e recuperar a sua força como grande partido da democracia portuguesa, já sem Rui Rio. O apoio a um governo do Chega nos Açores pesou na derrota de Rio. Porém, para o PSD o maior desafio não será o Chega. Este implodirá em várias dissidências e perderá força com o tempo. A grande ameaça será a Iniciativa Liberal, o novo espaço reformista moderado de direita e o exterminador implacável do CDS. A IL aparentemente é imune a voto útil no PSD. Um partido que consegue convencer jovens altamente qualificados que o caminho a seguir é privatizar o sistema público de educação que os formou deve ser levado a sério. É um terramoto o que a IL se propõe fazer em nome da Liberdade, conforme consta no seu programa de 600 páginas. Não. Esse liberalismo não funciona. Já foi testado no século XIX e correu muito mal. A IL é, no essencial, mais um movimento retro futurista.
Nos Açores o PS também obtém uma grande vitória. Vasco Cordeiro acertou nas suas escolhas. O seu discurso da noite eleitoral foi poderoso, suscitou saudades e ecoará por muito tempo. Cordeiro é um dos grandes vencedores da noite. Outro grande vencedor foi Francisco César. O político mais injustiçado dos Açores fez uma excelente campanha e provou a sua competência política. A sua intuição, o seu apurado sentido de oportunidade e a sua coragem em enfrentar desafios difíceis foram premiados. Sérgio Ávila e a restante lista também estão de parabéns. O PSD terá aprendido a nunca subestimar um adversário até ao fim das eleições.
Os resultados eleitorais nos Açores têm outras implicações. Algumas bem preocupantes. O presidente Bolieiro, a 3 de Dezembro, justificou que a candidatura da coligação AD, que no essencial representa o triunfo dos enganos, tinha como objetivo "consolidar" o projeto de governação nos Açores. Ou seja, segundo o seu próprio critério, a eleição de domingo era uma moção de confiança ao atual governo regional.
Ao seu evidente deficit de liderança política na governação regional, Bolieiro adicionou uma comprometedora derrota, autoinfligida, ao seu governo. Os resultados não podiam ser mais negativos para Bolieiro. A sua AD sofreu uma derrota estrondosa, perdeu em 18 dos 19 concelhos dos Açores. A AD vale menos do que a soma dos três partidos que a compõem. A AD é politicamente uma associação de socorros mútuos e sociologicamente uma conta de subtrair. A história vale mais que a vontade dos líderes. Nos Açores, as bases do PSD e do CDS sempre tenderam para a incompatibilidade.
Retomando o critério do presidente Bolieiro, a rejeição da governação nos Açores é claríssima. A tentativa de justificação a que Bolieiro recorreu na noite eleitoral é penosa, totalmente contraditória com a versão original. Uma "Fake news". Todavia, o facto mais desestabilizador da noite foi a progressão eleitoral muito expressiva do Chega e da IL, os dois "parceiros" parlamentares da AD.
Perante o jogo de equívocos sobre a leitura dos resultados eleitorais de domingo, promovido pelo próprio Boleiro, os seus "parceiros" de acordos parlamentares não perderam tempo e jogaram duro. E como se viu pelo discurso desses dois partidos na noite eleitoral, a fragilidade da atual governação dos Açores ficou ainda mais precária. Nuno Barata puxou mesmo do cartão "vermelho alaranjado" ao governo da AD.
José Bolieiro não terá vida fácil. Tem agora pela frente o desafio de colar os cacos em que se transformou a base parlamentar de apoio à sua governação. Não é uma missão impossível mas afigura-se muito improvável.