I. A Direita está em estado de negação constitucional. Na legislatura anterior já tinha dado inúmeras provas de que considerava a Lei Fundamental uma espécie de excentricidade acessória, a respeitar caso fosse possível. Mas agora que já não há a força de uma maioria para contrapor à Constituição, o que era uma demonstração de poder está a transformar-se numa teima infantil.
Nos últimos tempos – e o tempo, no atual panorama da política nacional, encurtou bastante -, a Direita, irritada com o que pensava ser um entendimento impossível entre os partidos à Esquerda, passou a achar que a Constituição não diz o que está lá escrito; que, se diz, não devia dizer; e que se não devia dizer, então é preciso altera-la para que passe a dizer o que devia estar lá escrito.
Esta recusa da realidade constitucional prende-se, particularmente, com uma conjugação incómoda de regras e princípios para quem gostaria de se manter no poder, por iniciativa própria ou com recurso a eventuais condições eleitorais favoráveis. E demonstra também que um governo de gestão com este tipo de entendimento dos princípios e normas que regem o nosso sistema político é apenas um governo que finge estar em gestão.
II. A possibilidade de um governo se manter em gestão é uma exceção constitucional que visa garantir que não há vazios de poder. Um governo nestas condições é um governo mínimo, que, no fundo, ainda não é ou já não é Governo, mas que, para que se garanta a ordem e estabilidade do sistema, se mantém em funções de administração corrente.
Esta é, pois, uma norma constitucional de proteção do sistema, um recurso funcional para períodos de transição. A interpretação jurisprudencial tem acrescentado critérios de urgência e necessidade para os atos a praticar por um governo de gestão. Mas também aqui se percebe o caráter excecional da norma, uma vez só na conjugação daquelas duas condições se admite que um governo de gestão assuma características de um governo normal.
Excecional, limitado e temporário. Um governo com estas características não deve, portanto, assinar contratos de venda a privados da maioria do capital de uma empresa pública (muito menos, à matroca, depois de cinco ou seis horas de reclusão negocial), mas sobretudo não pode nem dever servir de instrumento político para contornar outras limitações constitucionais contrárias aos interesses da Coligação.
III. Admitir a hipótese de Cavaco Silva manter em funções um governo de gestão cujo programa foi rejeitado, perante a existência de uma maioria parlamentar alternativa, não tem como objetivo a estabilidade do sistema e a manutenção da ordem constitucional, mas antes transfere o debate para o campo político-partidário, com tudo o que isso implica no extremar de posições entre Esquerda e Direita.
Este é, como agora se diz, o tempo do Presidente da República, depois do Parlamento ter rejeitado uma solução minoritária de governo e construído uma solução de suporte maioritário. Mas é também o tempo de um Presidente para quem o tempo já não tem significado político e que, nesse sentido e porque está constitucionalmente impedido de dissolver a Assembleia, está também em fase de gestão.
IV. O risco maior de todo este processo, que se vem desenrolando desde a noite eleitoral do passado dia 4 de outubro, é que se perca a noção de que o que está em causa é a criação de condições de governabilidade para o país. O acentuar da polarização entre os dois grandes blocos políticos, e da guerrilha político-constitucional a ela associada, tende a deixar à margem o interesse maior daqueles que, votando à direita ou à esquerda, desejam sobretudo um governo com condições para devolver a normalidade constitucional ao país.