A morte de Mário Soares representa o desaparecimento de uma personalidade pública impar na História de Portugal e confronta-nos com a obrigação de evocar a sua memória e defender o seu extraordinário legado. Soares não era apenas fixe, foi sobretudo único.
Na minha casa sempre se falou de política, muitas vezes profusamente. Este ambiente levou-me muito precocemente a adquirir consciência política e a inclinar-me para a esquerda.
O carinhoso “bochechas” era um verdadeiro herói lá em casa, o destemido lutador contra a ditadura, o pai da Democracia e o defensor da Liberdade.
Um dia, regressado da escola, o meu pai contou-me que havia um grande problema no PS, o Mário Soares e o Salgado Zenha tinham entrado em rotura. Zenha era uma grande personalidade política do PS mas tinha inspirado António Guterres a realizar uma revolta na direção nacional do PS contra Soares.
Este conflito marcou as eleições presidenciais de 1986, as únicas que tiveram uma segunda volta. Havia três candidaturas fortes à esquerda – Soares, Zenha e Maria de Lurdes Pintassilgo - e outra que fazia o pleno à direita – Freitas do Amaral. O PS apoiou Mário Soares que conseguiu ser segundo na primeira volta das presidenciais e depois ganhar a Freitas na segunda, por uma margem de apenas 120 mil votos. Foi uma batalha emocionante e inesquecível.
A minha primeira grande participação política foi precisamente nessa eleição. Em 1985, então com 15 anos, participei ativamente no lendário MASP (Movimento de Apoio de Soares á Presidência), cuja sede era no primeiro andar de um edifício em frente às Portas da Cidade. Uma das minhas missões foi distribuir na minha escola, na Antero de Quental, uma folha A4 com uma caricatura a preto e branco de Freitas do Amaral em forma de caranguejo parodiando o seu slogan de campanha – “Prá ‘Frente Portugal”. Foi um sucesso assinalável.
A fragilidade inicial da candidatura de Soares era bem espelhada na minha turma. Em 36 alunos apenas eu e o filho de um militar do continente destacado nos Açores éramos apoiantes de Soares. Um outro era comunista – mais tarde viria a ser padre - e dos outros 33 havia muitos que não manifestavam a sua opinião mas eram quase todos simpatizantes de Freitas do Amaral. Contei essa realidade ao meu pai e ao mandatário da candidatura nos Açores, o Dr. Luciano Mota Vieira, um homem pelo qual passei e nutrir enorme admiração depois de um debate na RTP-Açores entre ele e o mandatário do Dr. Freitas do Amaral.
Foi nesse ano que conheci pessoalmente Mário Soares. Uma verdadeira força da natureza, uma personalidade eletrizante que me marcou para sempre e que inspirou vários jovens a serem corajosos (sim, naquele tempo era preciso ter muita coragem física...) a tomar partido nos assuntos que dizem respeito a todos e a lutar com lealdade pelo que acreditam.
Para mim, o maior legado de Mário Soares nunca será esquecido e começou a ser construído logo após a Revolução do 25 de Abril
Mário Soares liderou um amplo movimento em torno do PS que defendeu intransigentemente a Liberdade em Portugal. E fê-lo com uma verdadeira visão de Estadista. Soares percebeu que a Liberdade só poderia ser instituída e garantida com base num regime democrático sólido e abrangente assente em instituições fortes e inserido em pleno na Europa.
Foi por isso que sempre defendeu uma democracia parlamentar pluripartidária e a adesão de Portugal à CEE – a organização precursora da actual União Europeia. Para Soares era imperativo nunca ilegalizar o PCP, como muitos defendiam, para evitar a sua marginalização e o risco de fazer eclodir uma guerra civil. Com Soares os comunistas foram obrigados a aderir às regras do “jogo” democrático. Mário Soares foi também muito cuidadoso a gerir o papel que o regime democrático conferiu às Forças Armadas e à Igreja Católica.
Devemos-lhe por isso a Liberdade, a Democracia e, na minha opinião, ter-se evitado uma guerra civil.
Até sempre Camarada.