(peça absurda, acto único)
(o palco está vazio, exceptuando uma pequena televisão ao canto direito, em cima de uma cadeira junto a uma secretária, ambas de madeira. a televisão está em silêncio e conseguem ver-se imagens da tragédia humana decorrente da invasão da ucrânia pela rússia. a única luz que ilumina o palco é a que vem de um quadro do senhor santo cristo, pendurado ao fundo do palco, do lado esquerdo, em forma de feixe que ilumina o centro do palco. ouvem-se ao longe uns passos pesados que se vão tornando mais audíveis.)
rei (entrando pela direita e falando sozinho): oh, meu deus, mas que homem difícil aquele! arre! inquietei-me para encontrar gente para o boli compor a digníssima trindade com o apoio do representante da república, e sai-me uma encomenda pior do que aquelas malditas pantufas de boi que encomendei da china no wish. um homem vê uma imagem no telemóvel e pensa que a coisa é certa e vai-se a ver, além de parecer terem sido feitas para anões, só veio uma. o que é que eu faço com uma pantufa? e o que é que faço com o aquele escovinha? ou são as touradas, ou são as perseguições na cultura, agora esta exoneração não exonerada... caramba!
padre (entrando pela esquerda): queria falar-me, caro rei?
rei: sim, queria e quero! eu não mudo de opinião como tu mudas de cuecas, homem de deus! então que raio de guerra é essa que tu andas para aí a armar?
padre: guerra? não está a falar antes da invasão da rússia? não sei se podemos designar aquilo bem de guerra...
rei: tu estás a gozar comigo? eu estou a falar a sério. não é a guerra da ucrânia, estou a referir-me à guerra com a secretária.
padre: mas essa secretária não é minha (aponta para a secretária, junto da cadeira e da televisão no palco). nunca a vi antes. a minha é de pau-preto e foi benzida pelo senhor bispo.
rei (mostrando sinais de irritação): mau, maria! não estou a falar da secretária de trabalho, homem de deus! estou a falar da secretária que está acima de ti, caramba!
padre: ah não, senhor rei. acima de mim não há secretária nenhuma. aliás, não há secretária nem cadeira nem vizinhos, que eu agora estou num apartamento sem gente por cima. sabia?
(o rei começa a andar em círculos, com as mãos atrás das costas e visivelmente irritado, enquanto o padre continua a sua conversa. de vez em quando, abana a cabeça em clara discordância.)
padre: deixei isso bem claro lá na direcção, quando lhes disse, num tom solene: "acima de mim, não pode haver ninguém. acima de mim só deus." e lá tiveram de me arranjar outro sítio para descansar os ossos ao fim do dia, que eu sou um homem de deus e tenho de estar directamente em contacto com ele.
Rei (suspira): não admira que tenhas sido exonerado. desta maneira não dá para falar contigo. mas tu estás a ouvir-me? ou vais continuar a falar sozinho?
padre: eu estou a ouvi-lo. não quero armar guerra com ninguém, mas em verdade vos digo, rei: de mim ninguém faz gato-sapato. sou de ideias fixas, não sou vira-casaca nem mudo de opinião facilmente.
rei: ai não? e então as touradas? num dia bates pé que as touradas são uma barbárie e que quem gosta de touradas é bárbaro e depois, poucos meses depois e já como director, decides participar numa tenta? pior! participar numa tenta e ferrar um animal. a sorrir tolamente para a câmara como se estivesses a fazer a coisa mais inocente do mundo.
padre: pois, essa saiu-me mal. mas já pedi desculpa a deus, paguei pelos meus pecados que eu sou um homem sério, e pronto. está feito.
rei: feito? está é mal feito! isso é hipocrisia pura, homem! as pessoas não gostam de cus de duas fraldas. um homem deve manter sempre a sua palavra! bom, a não ser que seja para derrotar socialistas... de resto...
padre: não sei o que é hipocrisia, rei. sei que se deve fazer o que eu digo e não o que eu faço. e olha, rei, eu não saio a não ser que me obriguem. e para me obrigarem, só depois dos dias do direito a resposta.
rei: mas este tipo de braço-de-ferro não favorece ninguém. vocês parecem duas comadres brigadas a lavar roupa suja nas redes e comunicação sociais. já não te bastavam as mensagens de email do dia das amigas, a mandar bitaites sobre o papel da mulher na sociedade, e agora metes-te com direitos de resposta e o diabo a quatro?
padre: que tem a mensagem do dia das amigas? acho que foi uma mensagem bonita.
rei (desesperado): linda! um dia ainda ganhas o nobel da literatura, vê lá! (afasta-se do padre e aproxima-se da secretária, colocando uma mão em cima do tampo de madeira) diz-me lá se não achas estranho que tantas mulheres tenham repudiado o teu texto e as tuas considerações, e que geres tanta polémica sempre que escreves sobre assuntos femininos?
padre: oh, rei, acredite... não foram assim tantas. estou habituado a ter mais contestação por parte das mulheres. aliás, sabe como é que são as mulheres: umas histéricas, umas histriónicas! (sacode no ar a mão como quem está a afastar um incómodo) é claro que não posso dizer isto publicamente, mas as mulheres deviam era estar em casa a cuidar das crianças que é para isso que deus as fez. para amarem os seus maridos, tomarem conta da casa e educarem os filhos. mas lá está, com estas modernices, uma pessoa tem que dizer umas coisas assim que é para elas ficarem contentes, mas no fundo não servem para mais nada. (o rei olha-o fixamente, incrédulo) aliás, até o senhor presidente o disse no seu facebook. disse que tinha a forte convicção de que as mulheres são, agora, pessoas. tem a convicção, veja lá! não a certeza. e ainda disse que elas são pessoas agora, não antes. está lá no texto, meu caro rei, que eu sou das escrituras e das coisas que sei fazer é ler. (aproxima-se do rei, que entretanto está prostrado junto à secretária, desalentado e visivelmente perturbado.) estas modernices de as mulheres acharem que mandam são passageiras. no fundo, quem manda somos nós. basta ver que a maioria dos membros do reino são homens. e os homens cobrem-se todos com a mesma manta, não é? não creio que os políticos sejam diferentes dos padres. por isso, não se preocupe, caro rei. tenho tudo controlado.
rei (hesitante na voz): como é que podes dizer isso, homem de deus? isto está tudo menos controlado.
padre: em verdade vos digo. publiquei um texto sobre as minhas façanhas no cargo! está tudo lá, tudo o que fiz e o que não fiz, que isto as pessoas não confirmam, e está tão bem escrito que fez circular uma petição contra a minha exoneração! que me diz disto?
rei (suspirando): pois, também circula uma petição contra essa petição. onde é que já se viu semelhante absurdo? uma petição contra uma petição...
padre: ora nem mais! vivemos tempos extraordinários! (fica agitado, saltitando no palco de um lado para o outro, feliz, como uma criança a quem lhe foi dado um rebuçado desejado) e tempos extraordinários requerem medidas extraordinárias. a mulher exonerou-me, o homem também, mas no fim de contas, a lei protege-me e não me podem pôr na rua. entretanto, vou continuando a fazer o meu trabalho, a passear por aí, a escrever uns artigos e a angariar assinaturas para a petição. para a primeira, claro está, que a segunda é "vade retro". e deus nosso senhor há-de compor isto tudo.
(enquanto o padre vai falando, o rei vai saindo de cena, arrastando os pés, visivelmente derrotado e sem esperança. sai pelo lado direito do palco, por onde havia entrado.)
padre (gritando para fora do palco): ó rei! olhe! quanto à secretária, se o senhor quiser, posso pedir ao bispo que a benza, que ela bem precisa, coitada. a minha, de pau-preto, está como nova!