um dos meus heróis favoritos do cinema foi, sem sombra de dúvida, o dr. henry walton “indiana” jones jr, mais conhecido apenas por “indiana jones”. enquanto crescia, vi e revi dezenas de vezes, em vhs e sem legendas, o indiana jones and the raiders of the lost ark, o indiana jones and the temple of doom e o indiana jones and the last cruzade, sempre com o deslumbramento de quem os via pela primeira vez e a admiração de quem sonhava com a aventura da arqueologia pela milésima vez.
ali estava um herói de carne e osso, desastrado e cómico nas suas investidas e fugidas, sem qualquer outro superpoder para além do seu conhecimento arqueológico, inteligência perspicaz e o seu chicote – sempre o seu chicote – capaz de destruir os planos malévolos dos maus da fita e restaurar a normalidade no mundo dos bons. o chapéu também lá estava, mas esse não lhe servia de muito mais para além do estilo e da protecção solar.
em junho de 1992, a lucasarts lançou o quarto jogo de computador baseado nos filmes, intitulado indiana jones and the fate of atlantis, um jogo point & click considerado nos nossos dias um verdadeiro “clássico”, não só pela beleza dos seus gráficos como pela riqueza da sua narrativa. na altura, eu e os meus amigos do bairro arranjámos o original em inglês, sem legendas, em cinco disquetes 3.5 na base das lajes, e distribuímo-lo entre nós.
no bairro de santa luzia, nesse longínquo verão de 92, eu e os meus amigos passámos horas e horas fechados em casa a jogar aquela aventura, que, para além da particularidade de ter três grandes caminhos de jogo (narrativa, lutas e equipa), tinha um pormenor que era para nós espectacular: uma parte da história passava-se nos açores. melhor ainda, passava-se na cidade de angra do heroísmo.
aquelas icónicas imagens dos mapas nos filmes do indiana jones, os separadores de transição entre cenas, nas quais uma linha vermelha era traçada da partida à chegada, tinham no jogo as suas sucessoras, particularmente uma em que o local de partida era a islândia e o local de chegada “the azores”.
a primeira vez que vira o meu arquipélago escrito em inglês foi no mapa do jogo do indiana jones. depois, uma panorâmica da baía de angra do heroísmo, onde se podia ver o hidroavião de indiana jones aterrar ali mesmo, no cais da alfândega, e o monte brasil, em todo o seu esplendor.
como a história do jogo se passava em 1939, tomámos as inconsistências gráficas – nomeadamente não existir o pico das cruzinhas no monte brasil – como pormenores históricos bem conseguidos e não tanto como incongruências propositadas para salvaguarda de direitos de autor, ou pura ignorância.
o certo é que nem o monte brasil nem a cidade de angra correspondiam perfeitamente ao que conhecíamos, salvo angra como baía e algumas edificações, como a igreja da misericórdia, a disposição do casario, e pouco mais. nem o castelo de são joão baptista existe no jogo. mas não havia dúvida, era mesmo a nossa cidade que estava ali representada.
vem isto a propósito do ensaio arqueologia da atlântida, de josé luís neto, e aquela nostalgia que me assola sempre que me lembro dos açores como palco da lenda da atlântida e de como eu, quando adolescente e agora adulto, também tenho um fascínio inato pela narrativa não-oficial e pelo misticismo das minhas ilhas como cenário de uma história tão fantástica e intemporal como a da atlântida.
numa altura em que os açores pouco ou nada eram conhecidos no resto do nosso país, ver plasmado nos novos ecrãs de computadores referências explícitas ao nosso arquipélago, com personagens como o sr. costa (que interage com indiana jones e lhe diz que a atlântida são os açores) e representações gráficas da cidade de angra, eram coisas que só poderiam significar grandeza.
fosse grandeza de história passada, grandeza de possibilidades futuras ou apenas grandeza ficcional, isso não nos interessava. o que era importante, a sério, era que a dada altura do jogo o indiana jones passava por angra do heroísmo e todos aqueles que passavam por essa parte tinham progredido um pouco mais no jogo e apressavam-se a contar aos amigos, ora para os orientar sobre o que fazer e o que responder ao sr. costa, ora para gozar o prato por terem conseguido chegar onde outros ainda não haviam conseguido.
no livro arqueologia da atlântida, publicado pelo instituto açoriano de cultura, em 2022, josé luís neto fala da arqueologia e da nossa atlântida sem desmerecer ambas – pese embora as evidências apontem para uma realidade dita por uns “oficial” e que já conhecemos, mais vírgula menos vírgula – e é essa, para mim, a enorme virtude deste ensaio.
na base do sonho e pela mão do mito, o autor guia-nos através da bibliografia, da documentação e da ciência, conjugando um vasto leque de referências, de histórias, de interpretações e de fontes que nos esclarecem o olhar, que nos substanciam o conhecimento, mas sem nunca deixar cair por terra a magia da fantasia ou o sonho que nos comanda a vida.
é uma linha ténue, esta, e josé luís neto traça-a de uma forma certeira: o desejo de uma narrativa alternativa não deve ser o toldar da interpretação arqueológica, como muitos nos querem fazer crer. deixa-o bem claro, ao longo do ensaio, quando escuma as interpretações pouco científicas que nos querem fazer crer que nas ilhas habitavam civilizações prévias ao nosso povoamento, mais por apresentação do que é válido do que pelo ataque directo ao delirante.
uma coisa é questionar e tentar problematizar as incongruências arqueológicas que poderão contribuir para um maior aprofundamento da história e do conhecimento humanos. é o que o autor do ensaio faz, ao congregar mitos e narrativas fantasiosas como construções humanas e motivadoras de uma vontade e visão próprias sobre a história, pese embora sejam todas elas – incluindo a própria história – constructos humanos e, como tal, falíveis e incongruentes.
outra coisa é querer atirar areia para uma engrenagem sem outra vontade que a de berrar bem alto que se está aqui e que se quer a diferença pela diferença; a confusão pelo obscurantismo, a falácia pela investigação.
o preconceito não deve fazer parte da investigação, nem devem as ideias preconcebidas nortear a ciência, sob pena de tentarmos acomodar a história às nossas leituras pessoais e àquela que é a nossa visão sobre os factos.
para mim, os açores serão sempre atlântida e é o sr. costa que o tem dito, há décadas, sem que ninguém acredite nele. nem o indy acreditou.